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domingo, 22 de janeiro de 2012

E a novela do H5N1 continua...

Eu? Eu me sinto ótima! De verdade! Muito bem. Nem mesmo uma  fungadinha... Nunca estive melhor...
Ontem, os cientistas que realizaram os estudos com o vírus influenza H5N1 em furões declararam que irão dar uma pausa de 60 dias nas pesquisas relacionadas a esse vírus (não entendeu nada? Leia aqui). Desde a imposição da NSABB de que os resultados fossem omitidos, uma onda de pânico se alastrou, e o debate se tornou extremamente polarizado. De um lado, ativistas de biossegurança defendendo a posição da NSABB e a interrupção da pesquisa e de outro os virologistas e microbiologistas defendendo a publicação dos resultados na íntegra. A pausa nos estudos tem como motivo dar à sociedade tempo para refletir nas implicações e riscos do estudo, e permitir a realização de uma conferência internacional a fim de discutir os prós e contras das publicações e da pesquisa.

Já expliquei como funciona a produção de conhecimento na ciência, e já dei um exemplo de como a omissão de dados pode ser prejudicial a esse processo e à sociedade. Uma epidemia de influenza é uma das ameaças potenciais mais perigosas à saúde pública, e ainda pouco se conhece sobre os mecanismos pelos quais o vírus se torna capaz de se transmitir via aérea (a natureza não publica artigos), e sobre outras características da infecção do influenza (como por exemplo, como ele ganha a capacidade de se transmitir à humanos).

Os dados gerados pelos pesquisadores dos Países Baixos podem ser vitais num futuro próximo (como na iminência de uma pandemia, por exemplo), por isso, quanto mais divulgados eles sejam, melhor será para a humanidade, pois mais e mais pessoas podem partir desses dados existentes e complementar e acumular o conhecimento que temos sobre o vírus.

Teoricamente (e friso o teoricamente, pois não há absolutamente nenhum indício real de que isso é possível) o alarmismo relacionado à pesquisa se dá por dois motivos: a possibilidade de esses dados serem usados por bioterroristas, ou um vazamento do vírus do laboratório, em ambos os casos, levando a uma pandemia de H5N1 altamente patogênico.

Já discuti anteriormente porque dificilmente esses dados ajudariam bioterroristas, pois há formas muito mais simples de se criar armas biológicas com os dados já existentes na literatura. E vamos combinar ninguém espalhou tanto terror quanto a NSABB quando começou essa história toda (ou não estaríamos tendo essa discussão, certo?).

Sobre um possível vazamento, comentei antes que concordava que de fato esse vírus deveria ser estudado em laboratórios com alto nível de biossegurança, como P3 ou P4 (os dois níveis mais altos de biossegurança existentes), que contam com uma complexa infraestrutura a fim de evitar que o manipulador se contamine com o material que está sendo estudado (nesse caso, o vírus) e a fim de impedir um escape desse vírus para o ambiente. Descobri que, (adivinhem só!) os estudos foram todos conduzidos em laboratórios P3, ou seja, essa cautela já foi tomada. Se por acaso chegar-se à conclusão de que os estudos devem ser realizados em laboratórios P4, que seja, mas que a pesquisa seja levada adiante.


E muito se especula (e friso o especula) que esse vírus tenha uma letalidade de 50%, já que 50% das pessoas que deram entrada nos hospitais infectadas pelo H5N1 morreram. Mas, pense comigo... Se você fica levemente gripado, você vai ao hospital? Às vezes não vamos nem quando estamos seriamente gripados! O fato de a pessoa ter sido internada já é um indício que o seu caso era mais grave que o comum, e talvez calcular a letalidade de um vírus baseado no número de pessoas que deram entrada em hospitais seja um método tendencioso. Então, pra calcular-se da maneira correta, teríamos que dividir o número total de mortes causadas pelo vírus pelo número total de pessoas infectadas. Tudo bem, assumo que é impossível calcular o número total de pessoas infectadas... Mas estudos demonstraram que há pessoas que possuem anticorpos contra o H5N1 (uma prova de que essas pessoas tiveram contato com o vírus) e estão por aí felizes, contentes e, principalmente, vivas. O trabalho analisou 800 trabalhadores rurais da Tailândia, e chegou à conclusão que 9% deles tinham anticorpos contra o H5N1. É claro que, sendo um vírus de aves que dificilmente infecta humanos, esse número não seria retumbantemente enorme (provavelmente só aqueles que trabalham diretamente com aves tiveram uma infecção com o H5N1 e desenvolveram anticorpos), mas só essa evidência já mostra como esse cálculo da letalidade está errado. Outro estudo com 8500 candidatos (de diferentes origens) revelou que 1,3% tinham anticorpos contra o H5N1. E mais uma vez lembro, sabemos que o vírus é letal em furões, não há como descobrir (a não ser que Dona Natureza nos apronte uma) se ele é letal em humanos.

O jeito agora é esperar pelo fim da pausa e a conclusão da conferência para sabermos se a ciência perdeu ou ganhou essa, e se o primeiro caso de censura da ciência moderna vai se concretizar ou não. Uma coisa é certa, os dois lados irão expor suas idéias. Os cientistas apresentarão os fatos (pois é apenas nisso que eles acreditam) sem menosprezar ou aumentar qualquer evidência. Mas será que os ativistas de biossegurança ouvirão os fatos?

Por Luiza Montenegro Mendonça. Sim, desisti do alinhamento justificado, o blogger tá de brincadeira comigo...

A íntegra da declaração dos autores do estudo pode ser vista aqui.

Cartoon retirado daqui.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O primeiro caso de censura da ciência moderna



Lembram-se que eu disse (no post anterior, olha aqui) que havia um episódio que estava tirando o sono da comunidade científica?

Pois bem, dia 20 de Dezembro uma história que vinha se desenrolando há quase dois meses chegou ao seu desfecho.

Cientistas dos Países Baixos (sabiam que a Holanda é só uma das províncias dos Países Baixos?) realizaram um experimento longo e demorado, porém simples, em furões. Eles estudavam o vírus influenza subtipo H5N1. O furão é um bom modelo para se estudar a infecção por influenza, porque eles apresentam sintomas e reações semelhantes à que nós humanos temos quando estamos gripados, além de serem fofinhos. O experimento consistia em infectar um ou mais furões e deixar o vírus fazendo a festa replicando livremente, recolher os novos vírus produzidos e passando de um furão a outro durante um longo período de tempo até notarem que o vírus repentinamente tinha se tornado mais transmissível que antes (um sinal de que algo havia mudado no vírus original). Em virologia isso se chama treinamento viral, e é feito justamente quando se deseja identificar quais mutações genéticas conferem a um determinado vírus uma nova característica. Nesse caso o treinamento foi feito a fim de descobrir quais mutações tornavam o vírus transmissível pelo ar (e não através de contato íntimo, como o que ocorria antes). Quando eles analisaram o vírus resultante e comparam com o vírus original, eles notaram que houve (apenas) cinco mutações em dois genes virais, e que essas mutações eram responsáveis pela nova característica desse vírus, a transmissão aérea.

Esses resultados podem ter desdobramentos muito favoráveis. Podemos monitorar o H5N1 circulante na natureza e acompanhar em que estágio de mutação ele se encontra, possibilitando uma ação preventiva ANTES que o vírus se torne plenamente transmissível pelo ar. Podemos desenvolver drogas, kits diagnósticos e talvez até vacinas para esses vírus, se fosse necessário.

O H5N1 geralmente infecta aves com uma alta letalidade (aproximadamente 50%), e há casos de infecção em humanos que tiveram contato com aves (poucos, porém também com alta letalidade). No entanto esse vírus não consegue se transmitir bem de humano a humano.

E aí está tudo o que é necessário para um alarmismo (infundado). A NSABB (National Science Advisory Board for Biosecurity ou Conselho Consultivo Científico de Biossegurança dos EUA) solicitou que o artigo não fosse publicado em seu estado atual, e que o mesmo fosse reescrito, omitindo dados (incluindo a sequência genética do vírus mutado), a fim de não se tornar uma receita para o bioterrorismo. Afinal, tínhamos um vírus altamente letal (H5N1) que era agora capaz de transmitir por via aérea! Se essa informação caísse em mãos erradas, poderíamos ter a maior pandemia de influenza da história! Exemplos de matérias apocalípticas sobre esse episódio podem ser vistos aqui e aqui.

Agora, vamos aos fatos (afinal, esclarecer e informar cientificamente o público foram justamente alguns dos motivos que me levaram a criar esse blog).

Sabemos que o H5N1 original (ou selvagem, como é a designação usual em ciência) é altamente letal em aves, humanos e furões. Sabemos que o H5N1 mutado é altamente letal em furões. Não temos como saber se o vírus mutado é letal em humanos (alguém se voluntaria a testar?). Pode até ser, mas isso iria contra algumas coisas que já aprendemos em virologia até o momento. De fato, passar o vírus sequencialmente em uma espécie que não é o hospedeiro natural DIMINUI a virulência (letalidade) desse vírus ao seu hospedeiro original. Pra dizer a verdade, essa é inclusive uma estratégia que já foi muito usada para desenvolver vacinas virais atenuadas (onde o vírus continua viável, mas não é capaz de causar doença, e de quebra, ainda te dá imunidade contra o vírus selvagem que poderia te deixar terrivelmente doente, com seqüelas ou até te matar). A vacina Sabin, contra poliomelite, é um exemplo. Ela foi passada sequencialmente em cultura de células de rim de macaco (logo, não humano), e isso deu um trabalho ao vírus que precisou se adaptar ao novo ambiente, até o vírus adquirir mutações que permitiam a passagem eficiente em células de macaco. Só que isso teve um preço pro vírus, em troca ele perdeu a patogenicidade (capacidade de causar doença) em humanos. Outras vacinas foram desenvolvidas assim, como contra a febre amarela, sarampo e caxumba (feitas em ovos embrionados). Sendo assim, tendo como base a experiência humana anterior com passagem viral sequencial em hospedeiros animais, a letalidade para humanos desse vírus adaptado a furões deve ser menor que a do vírus selvagem (embora nunca possamos testar isso).

Outra coisa. Eu até concordo que esse vírus deva ser armazenado e manipulado em um local com alto nível de biossegurança, mas não há como justificar que a publicação da sequência genética dele seja um risco. Bioterroristas dificilmente teriam como “montar” um vírus inteirinho a partir de sua sequência genética (seu genoma), isso é extremamente complicado e exige pessoal muito qualificado, equipamentos de ponta e reagentes caríssimos, que dificilmente estariam ao alcance de bioterroristas (muito pesquisador bom gostaria de ter isso ao seu alcance e não tem!). Além disso, há genomas muito mais perigosos que já foram publicados, como o influenza H1N1 que causou a pandemia de 1918 (o nome gripe espanhola é familiar?), o ebola, o vírus da varíola e por aí vai... Se eles quisessem fazer um influenza virulento e transmissível eles poderiam simplesmente fazer passagens seqüenciais em furões. Melhor ainda, eles poderiam simplesmente fazer passagens seqüenciais em humanos (bioterroristas têm bioética?), até surgir um mutante garantidamente letal e altamente transmissível em humanos (afinal, o vírus se adaptou em humanos). E isso seria muito mais simples, fácil e barato que montar um vírus a partir do seu genoma, ou inserir as mutações necessárias para isso (quem já teve que fazer mutagênese sabe o quão complicado isso é).

E mais importante. Pelo post anterior ficou relativamente claro a importância de termos acesso aos deltalhes experimentais e à todos os resultados de qualquer artigo. Só assim, os resultados podem ser replicados por outros grupos, confirmados e aprofundados (geração de drogas, vacinas etc). Essa censura aos resultados engessa a progressão da ciência e atrasa o desenvolvimento de novas armas contra esse vírus. E a natureza, a maior bioterrorista de todas e a melhor geradora de mutantes virais e pandemias não espera.

O corpo editorial da revista Nature e Science, para onde os dois artigos resultantes do estudo foram submetidos, pronunciaram-se repudiando a censura. Porém, os autores relutantemente aceitaram reescrever o artigo, omitindo os dados solicitados pela NSABB (embora eu duvide que eles tivessem tido muita escolha).

A apreensão da comunidade científica se dá por isso. Esse é o primeiro caso de censura à uma publicação científica. Mas quem pode garantir ser o último?


Por Luiza Montenegro Mendonça
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