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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O primeiro caso de censura da ciência moderna



Lembram-se que eu disse (no post anterior, olha aqui) que havia um episódio que estava tirando o sono da comunidade científica?

Pois bem, dia 20 de Dezembro uma história que vinha se desenrolando há quase dois meses chegou ao seu desfecho.

Cientistas dos Países Baixos (sabiam que a Holanda é só uma das províncias dos Países Baixos?) realizaram um experimento longo e demorado, porém simples, em furões. Eles estudavam o vírus influenza subtipo H5N1. O furão é um bom modelo para se estudar a infecção por influenza, porque eles apresentam sintomas e reações semelhantes à que nós humanos temos quando estamos gripados, além de serem fofinhos. O experimento consistia em infectar um ou mais furões e deixar o vírus fazendo a festa replicando livremente, recolher os novos vírus produzidos e passando de um furão a outro durante um longo período de tempo até notarem que o vírus repentinamente tinha se tornado mais transmissível que antes (um sinal de que algo havia mudado no vírus original). Em virologia isso se chama treinamento viral, e é feito justamente quando se deseja identificar quais mutações genéticas conferem a um determinado vírus uma nova característica. Nesse caso o treinamento foi feito a fim de descobrir quais mutações tornavam o vírus transmissível pelo ar (e não através de contato íntimo, como o que ocorria antes). Quando eles analisaram o vírus resultante e comparam com o vírus original, eles notaram que houve (apenas) cinco mutações em dois genes virais, e que essas mutações eram responsáveis pela nova característica desse vírus, a transmissão aérea.

Esses resultados podem ter desdobramentos muito favoráveis. Podemos monitorar o H5N1 circulante na natureza e acompanhar em que estágio de mutação ele se encontra, possibilitando uma ação preventiva ANTES que o vírus se torne plenamente transmissível pelo ar. Podemos desenvolver drogas, kits diagnósticos e talvez até vacinas para esses vírus, se fosse necessário.

O H5N1 geralmente infecta aves com uma alta letalidade (aproximadamente 50%), e há casos de infecção em humanos que tiveram contato com aves (poucos, porém também com alta letalidade). No entanto esse vírus não consegue se transmitir bem de humano a humano.

E aí está tudo o que é necessário para um alarmismo (infundado). A NSABB (National Science Advisory Board for Biosecurity ou Conselho Consultivo Científico de Biossegurança dos EUA) solicitou que o artigo não fosse publicado em seu estado atual, e que o mesmo fosse reescrito, omitindo dados (incluindo a sequência genética do vírus mutado), a fim de não se tornar uma receita para o bioterrorismo. Afinal, tínhamos um vírus altamente letal (H5N1) que era agora capaz de transmitir por via aérea! Se essa informação caísse em mãos erradas, poderíamos ter a maior pandemia de influenza da história! Exemplos de matérias apocalípticas sobre esse episódio podem ser vistos aqui e aqui.

Agora, vamos aos fatos (afinal, esclarecer e informar cientificamente o público foram justamente alguns dos motivos que me levaram a criar esse blog).

Sabemos que o H5N1 original (ou selvagem, como é a designação usual em ciência) é altamente letal em aves, humanos e furões. Sabemos que o H5N1 mutado é altamente letal em furões. Não temos como saber se o vírus mutado é letal em humanos (alguém se voluntaria a testar?). Pode até ser, mas isso iria contra algumas coisas que já aprendemos em virologia até o momento. De fato, passar o vírus sequencialmente em uma espécie que não é o hospedeiro natural DIMINUI a virulência (letalidade) desse vírus ao seu hospedeiro original. Pra dizer a verdade, essa é inclusive uma estratégia que já foi muito usada para desenvolver vacinas virais atenuadas (onde o vírus continua viável, mas não é capaz de causar doença, e de quebra, ainda te dá imunidade contra o vírus selvagem que poderia te deixar terrivelmente doente, com seqüelas ou até te matar). A vacina Sabin, contra poliomelite, é um exemplo. Ela foi passada sequencialmente em cultura de células de rim de macaco (logo, não humano), e isso deu um trabalho ao vírus que precisou se adaptar ao novo ambiente, até o vírus adquirir mutações que permitiam a passagem eficiente em células de macaco. Só que isso teve um preço pro vírus, em troca ele perdeu a patogenicidade (capacidade de causar doença) em humanos. Outras vacinas foram desenvolvidas assim, como contra a febre amarela, sarampo e caxumba (feitas em ovos embrionados). Sendo assim, tendo como base a experiência humana anterior com passagem viral sequencial em hospedeiros animais, a letalidade para humanos desse vírus adaptado a furões deve ser menor que a do vírus selvagem (embora nunca possamos testar isso).

Outra coisa. Eu até concordo que esse vírus deva ser armazenado e manipulado em um local com alto nível de biossegurança, mas não há como justificar que a publicação da sequência genética dele seja um risco. Bioterroristas dificilmente teriam como “montar” um vírus inteirinho a partir de sua sequência genética (seu genoma), isso é extremamente complicado e exige pessoal muito qualificado, equipamentos de ponta e reagentes caríssimos, que dificilmente estariam ao alcance de bioterroristas (muito pesquisador bom gostaria de ter isso ao seu alcance e não tem!). Além disso, há genomas muito mais perigosos que já foram publicados, como o influenza H1N1 que causou a pandemia de 1918 (o nome gripe espanhola é familiar?), o ebola, o vírus da varíola e por aí vai... Se eles quisessem fazer um influenza virulento e transmissível eles poderiam simplesmente fazer passagens seqüenciais em furões. Melhor ainda, eles poderiam simplesmente fazer passagens seqüenciais em humanos (bioterroristas têm bioética?), até surgir um mutante garantidamente letal e altamente transmissível em humanos (afinal, o vírus se adaptou em humanos). E isso seria muito mais simples, fácil e barato que montar um vírus a partir do seu genoma, ou inserir as mutações necessárias para isso (quem já teve que fazer mutagênese sabe o quão complicado isso é).

E mais importante. Pelo post anterior ficou relativamente claro a importância de termos acesso aos deltalhes experimentais e à todos os resultados de qualquer artigo. Só assim, os resultados podem ser replicados por outros grupos, confirmados e aprofundados (geração de drogas, vacinas etc). Essa censura aos resultados engessa a progressão da ciência e atrasa o desenvolvimento de novas armas contra esse vírus. E a natureza, a maior bioterrorista de todas e a melhor geradora de mutantes virais e pandemias não espera.

O corpo editorial da revista Nature e Science, para onde os dois artigos resultantes do estudo foram submetidos, pronunciaram-se repudiando a censura. Porém, os autores relutantemente aceitaram reescrever o artigo, omitindo os dados solicitados pela NSABB (embora eu duvide que eles tivessem tido muita escolha).

A apreensão da comunidade científica se dá por isso. Esse é o primeiro caso de censura à uma publicação científica. Mas quem pode garantir ser o último?


Por Luiza Montenegro Mendonça

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